Nunca pensei que tomaria Misoprostol
Nunca imaginei que passaria pela experiência de um aborto
Si preferís leer este texto en español, te dejo la traducción aquí.
1.
Vivo no Uruguai, onde a interrupção voluntária da gravidez é legal desde 2012. Sempre soube que abortar era um caminho que eu poderia seguir, se assim desejasse e cumprisse com os requisitos. Sou grata por viver num país onde tenho esse direito, mas a ideia de um aborto nunca foi mais que isso, uma ideia. Algo distante, difuso. Isso porque nunca vivi uma situação na qual contemplei essa opção, nunca tive que pensar nisso. Até o dia 7 de janeiro de 2025.
2.
Descobrimos a gravidez em novembro do ano passado. Estávamos emocionados, assustados, surpresos, felizes. Mais que tudo, felizes. Foi uma gravidez desejada. Esperamos algumas semanas e logo compartilhamos a notícia com algumas pessoas próximas. Decidimos que somente iríamos anunciar a novidade pra todos os nossos afetos depois dos famosos 3 meses.
Não chegamos lá.
Pertinho de completar as 12 semanas de gravidez, num ultrassom de rotina, a médica nos explicou, com todo o tato possível, que aquilo que estávamos criando já não estava mais lá. O embrião deixou de crescer, o coração parou de bater. A gravidez não iria continuar.
3.
Meu corpo, porém, ainda não tinha assimilado a notícia. O embrião já não era mais viável, mas eu não tive nenhum sangramento. Meu corpo, a casa que eu esperava ser praquele início de pessoinha, não queria abrir mão dela. Então era preciso intervir.
O médico que vi no mesmo dia do ultrassom explicou o procedimento. Quatro comprimidos de Misoprostol que poderíamos chegar a repetir se o sangramento não viesse.
A dificuldade começou com o próprio ato de tomar o medicamento, já que não pode ser engolido. Os comprimidos precisam se dissolver na boca. Demorei uma boa hora até que os benditos se desmanchassem completamente. Assim que o restinho do último comprimido desaparecia na minha saliva eu comecei a sentir pontadas no ventre. E frio, muito frio. Eu tremia e esperava.
A dor chegou pouco tempo depois.
4.
Suor frio, lençol pegajoso e sangue, muito sangue. A dor vinha em ondas, se aproximava lentamente, ia crescendo e crescendo dentro de mim, até chegar ao ponto mais alto, a dilaceração mais intensa. Nunca senti uma dor assim. Pensei por momentos que não ia aguentar, que terminaria desmaiando. Mas bem nessa hora, quando toda esperança se esvaia, a dor diminuía. E por alguns segundos eu deixava meu corpo flutuar na sensação de alívio. Até começar tudo de novo.
Não pude deixar de associar esse processo com as famosas contrações do parto. Dor massiva, logo descanso, logo dor de novo, num ciclo longo e intenso. No meu caso, sem final feliz.
Pari um projeto que queria da forma que menos queria.
5.
Ser mãe nunca foi um sonho de toda vida ou algo que sempre quis. Nunca pensei muito sobre isso até conhecer e me apaixonar pelo homem com quem divido a vida há quase 10 anos. Decidi que queria ser mãe porque é com ele, porque somos nós. Porque de repente surgiu aquela curiosidade de como seria algo criado por nós dois, uma misturinha nossa. Teria seus olhos e meus cachos? Gostaria de ler ou de jogar futebol? Falaria portunhol nesse mix que sempre foi nossa vida de brasileira e argentino vivendo no Uruguai?
Como seria a aventura de criar uma criança nesse mundo tão desolado, mas tão necessitado de pessoas que queiram fazer a diferença?
Quando começamos a buscar a gravidez, as coisas aconteceram num piscar de olhos. Parei de tomar o anticoncepcional que me acompanhou todos esses anos e dois meses depois estava grávida. Me senti tão especial, tão sortuda…
Hoje penso, por que raios o universo nos deu esse presente somente pra tirá-lo de nós ainda mais rapidamente?
6.
Em pouquíssimo tempo incorporei a identidade “mãe”. Talvez porque descobrimos a gravidez no final do ano, então todas as nossas resoluções de 2025 foram feitas ao redor disso. Tantos planos, tantas ideias. Como decorar o quarto, que nome escolher, o que precisaríamos aprender, o que queríamos fazer…
De repente, tudo mudou, todas essas apostas se tornaram vazias. Já não sei bem o que esperar de 2025. Começamos o ano com tanta esperança, agora sentimos o oposto.
Quem vou ser, agora que já não me sinto mais a mesma pessoa? Agora que não posso voltar a ser quem era porque essa experiência me transformou, corpo e alma?
Mas mãe também não vou ser, pelo menos não agora. Sinto que preciso voltar a me (re)conhecer.
7.
Quando a médica que fez meu ultrassom nos deu a terrível notícia, eu não chorei. Escutamos, perguntamos e saímos dali o mais rápido possível. No carro, abraçados, deixamos as lágrimas caírem. A primeira coisa que disse pro meu marido foi desculpas. Ele me abraçou ainda mais forte e disse que não tinha que pedir desculpas, que não fiz nada, que não fizemos nada de errado. Que isso acontece.
E logo escutei essa frase de novo e de novo, dos médicos, das pessoas amadas. “Isso acontece”. Mas parece tão desconectado da nossa realidade. Por que iria acontecer conosco?
Esperar os 3 meses pra dar a notícia pro mundo era uma formalidade. Nunca pensamos que uma fatalidade realmente poderia acontecer. Essas coisas não acontecem com a gente, acontecem com os outros.
Inclusive, não podia acontecer comigo. Porque se aconteceu comigo, algo errado fiz. Ou deixei de fazer. De alguma forma, aquilo que estava gerando dentro de mim não quis ficar. Será que meu corpo não era o lar que precisava ser? Onde estava o defeito?
Algumas horas depois, em uma conversa com uma amiga, eu disse que me sentia um fracasso. E ela me respondeu que não poderia estar mais longe disso. “Se necesita coraje y valentía para enfrentar estas cosas”.
E eu enfrentei. Chorando pela dor interna, chorando pela dor física. Mas enfrentei. Enquanto passava pela noite pavorosa com os efeitos do Misantropol, senti a fortaleza desse meu corpo que nunca me abandonou. E também percebi que meu corpo fez tudo certo. Construí um lar tão bem, mas tão bem, que nunca deixei nosso bebito sair, mesmo quando ele já não estava mais lá. Precisei forçar meu corpo a expelir o que já não ia mais usar, tamanha foi minha força e determinação em mantê-lo comigo.
8.
Hoje faz 1 mês e 7 dias dias desde que descobri que minha gravidez foi interrompida. Ninguém sabe exatamente porque essas coisas acontecem, mas acontecem. Só que não falamos muito sobre isso então, quando acontece com a gente, é muito dificil encontrar sentido.
Escrevi esse texto pra tentar colocar ordem em tudo que sentia e também porque gostaria que mais pessoas que passaram ou estão passando por essa situação soubessem que não estão sozinhas.
Te estendo a mão, amiga. Não sei como sair daqui, mas pelo menos podemos buscar a saída juntas.
Mais leituras que abraçam:
❤️🩹 Um vídeo sobre endometriose que descobri na newsletter da
. Que importante é a gente conhecer nossos corpos…📣 Maíra Cardi e as histórias de aborto que a gente conta, texto da revista AzMina.
📋 Outro texto do Subs em formato de lista que também fala sobre transformações da
.🎀 Uma reflexão sobre as pequenas coisinhas que nos ajudam em períodos de luto.
Janeiro foi sobre:
🙏 Paciência pra lidar com o luto, as dores, os tempos do corpo (que não são como os tempos da mente…)
📚 Definir nova meta anual de leitura no GoodReads e começar com o pé direito: em janeiro li bastante!
🎸 Ficar completamente obcecada com o novo álbum do Mumford & Sons (que ainda não saiu e só tá com uma música liberada - mas que música boa!)
🏆 Ver todos os vídeos que pude da totalmente indicada e premiada Fernanda Torres. Vai lá mulher, continue arrasando!
Se você gostou dessa edição da news, também pode gostar dessa aqui:
Ah, amiga, poxa vida, sinto muito que tenha passado por tudo isso! Mas tenho certeza que vocês juntos irão passar por essa dor e construir muitas outras alegrias! 💖
Muito amor e tempo para você ❤️